Um suicida com TOC

Roberval tinha cara de viado. Tinha jeito de viado. E se comportava como um viado. Mas ele não era viado. Ele tinha TOC. O transtorno começou quando ele ainda era moleque. Não brincava na areia, não matava passarinho, não sentava no banco da praça e não tocava em nada que pudesse sujar suas mãos limpas e livres de bactérias. E ele era tão fresco que só beijou a primeira namorada depois que ela escovasse os dentes pelo menos umas cinco vezes. Mesmo assim não poderiam trocar salivas e nem pensar encostar uma língua na outra. Depois de uma semana com este ritual rigoroso a pobre coitada dispensou o rapaz asseado. Dizia ela que o ser humano não poderia viver para sempre isento de qualquer sujidade. Outras particularidades, devido a sua obsessão compulsiva, delineavam a sua personalidade para um comportamento misantropo. E sentia ele uma aversão mórbida de tudo que viesse da rua. Até mesmo pelo carteiro. Antes de pegar as cartas que acumulavam embaixo da porta, passavam elas por um processo de higienização. Das poucas vezes que saia de casa até o mercadinho mais próximo para fazer as compras da semana, Roberval consultava as trancas de portas e janelas pelo menos umas vinte vezes, só para ter certeza que estavam bem fechadas. Testar a segurança do lar nunca é demais. Dizia ele. Há vagabundos por todo canto só esperando o momento certo para usurpar o bem alheio. Completava. E tinha ele um zelo pelas coisas que era fora do normal. Claro, ele tinha TOC.
Algumas vezes ele também passeava na pracinha quando o sol parecia mais ameno. Queimar a pele então nem pensar. Dava calafrios só de lembrar-se do couro saindo em tiras de seu corpo. Havia na praça um banquinho que era especial. E era o único que ele arriscava sentar, mas antes, como de praxe puxava um frasco com álcool e borrifava por todo o local.
Com o tempo Roberval se tornou ainda mais arredio. Talvez fosse acometido por um vazio existencial que se transformou em uma depressão. Mas Roberval não ficava um dia sem tomar banho e fazer a barba. Na verdade, eram seis banhos por dia. Se for pra morrer que seja limpinho, pensava. E este pensamento foi tomando conta de seu espírito todos os dias.
Numa manhã, despertando de seu leito cândido e de uma alvura impecável, puxou uma agenda de seu criado-mudo branquinho e imaculado para ler algumas anotações que fazia ao longo do mês. Ao ler tudo com a mesma parcimônia de um velho pároco, sentiu no peito um vazio ainda maior, pois sabia ele que tinha uma vida limitada devido aos seus acessos e excessos de frescura. Mas eu sou homem. Pensou consigo mesmo. Será que sou viado? Veio a dúvida atroz. Não! Não sou viado! Excluiu qualquer resquício deste pensamento quando pensou em algo que você leitor, deve estar pensando também. Jamais permitiria ser encouchado por outro homem. Deu três toques na madeira e isolou o pensamento funesto. Nisto, aquela vozinha perniciosa lhe cutucou o ouvido. Roberval, a tua vida é uma merda. O melhor que tens a fazer é sucumbir à própria morte. Lá do outro lado será melhor pra ti. Até preparamos uma túnica linda e branquinha para cobrir teu corpo. E você não precisa andar sobre a areia e a relva, pois vai flutuar feito os anjos.
Por um momento Roberval gostou da ideia. Principalmente na parte de flutuar sobre as impurezas que pudesse lhe tocar. Pensou mais um pouco e decidiu. Vou me matar. Isto mesmo, só a morte vai me libertar desta sujeira mundana. Não posso mais respirar este ar poluído que enegrece minha alma. Num salto saiu da cama para planejar melhor como tiraria a própria vida.
Foi para a cozinha e segurou a faca mais afiada que tinha na gaveta. Olhou para o chão limpinho sem nenhuma poeira e pensou. Isto vai fazer a maior sujeira. Largou a faca novamente na gaveta e procurou novas alternativas. Com uma corda comprida eu poderei alçar naquela madeira grossa e passar pelo meu pescoço. Num instante lembrou que tinha asma e poderia morrer sufocado. Seria uma morte tão trágica e boba. Hoje em dia caiu em desuso o enforcamento.
Sem saber o que fazer e como fazer, abriu a porta, atravessou a rua e foi até a farmácia do Tião. Embora tivesse um cheiro corrosivo de remédios misturado com perfumes, o local era bem conservado. Roberval pediu veneno para ratos. Este não tem mais. Disse o farmacêutico. Mas posso conseguir para você aquele veneno especial para matar cachorros, se este for o teu problema. Estes malditos cachorros não nos deixam dormir em paz à noite. Concluiu o farmacêutico mesmo sabendo que era proibido tal comércio. Não. Disse Roberval com a mais absoluta certeza. Não é para matar cachorro. É para outros fins, porém não vou querer este por ser forte demais. Preciso de algo mais delicado. Assim tão delicado não tenho aqui. Disse Tião com certa graça. Então me vê um frasco de álcool com borrifador. E Roberval saiu com o álcool na mão com a ideia fixa que acabaria com sua vida e também todo o sofrimento imposto pelo ambiente hostil.
Deixou a noite cair para finalmente pôr em prática seu plano. Levou consigo a agenda, uma vassoura, detergente e também o frasco de álcool que comprou na farmácia pela manhã. Andou poucas quadras e chegou ao local de sua morte. A torre de telefonia. Tinha duas. Escolheu a mais limpinha. Olhou para cima e quase lhe deu vertigem ao ver a escada íngreme que o levaria até o topo. Antes de subir calculou mais ou menos o alvo de sua queda e limpou cuidadosamente o local. Varreu, tirou o pó, fez uma barreira com o detergente para as formigas não invadirem e assim bolinar seu corpo e finalmente tomou a decisão de subir na droga daquela torre. Mas antes, como sempre, borrifou o álcool por tudo para espantar os insetos. E cada degrau que subia ia abrindo espaço com um pano e muito álcool para se livrar de toda àquela poeira. Chegou lá em cima e se agarrou na ferragem devido a altura. Viu toda a cidade que dormia naquele momento. As luzes o encantaram profundamente. Ao longe avistou o aterro sanitário e teve calafrios. Quis morrer logo para não ver mais aquilo em sua frente. Ainda que a noite limitasse a sua visão, podia ele ver tudo isto devido a lua cheia e a boa iluminação da cidade.
Antes de se jogar, quis ele rezar um Pai Nosso. A prece me levará direto para a túnica branquinha e de seda. Quando terminou a oração quis também fazer uma prece para Maria, mãe de Jesus. Não custa nada. Pensou. Depois disto abriu a agenda e quis escrever um pouco de sua história para que todos lessem. Talvez coloquem até no jornal, por isso devo caprichar. Primeiro devo deixar bem claro que não sou viado. Morrer com fama de viado sem o ser é muito humilhante. E Roberval, numa frescura incessante adiava a própria morte. Fez questão de sublinhar na última linha que não era viado, e sim tinha TOC.
E, antes de Roberval concluir ou não este plano, eu me despeço por aqui e finalizo este conto. A frescura de meu personagem é tanta que eu não tenho mais coragem de continuar escrevendo. Se algum dia ele decidir morrer ou viver como um homem, eu volto para finalizar a história.

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O título é um tanto sugestivo e não por acaso coloca o próprio autor longe de casa, à deriva que busca um terreno seguro para ancorar. Cansado por navegar e perceber que não há mais terras seguras, um lar. O ser humano quer direitos iguais a pretexto de agredir seu próximo. Este blog está marcado e saturado por contos irreais e ao mesmo tempo povoa não só o imaginário, é o próprio real forjado nas linhas que os compõem.

Disseram-me um dia que eu deveria falar de coisas reais, de coisas normais e compor os mais belos poemas para saudar a Criação. Pobres ingênuos, ou cegos, ou mentirosos. É exatamente isso que faço, colocar nas entrelinhas o que há tempos se tornou normal e convive lado a lado com toda loucura humana. Normal é a prostituição, o esvaziamento de si mesmo para dar lugar aos instintos mais perversos. Normais são os vícios e tudo aquilo que envolve a aura libertina, desregrada e compartilhada o que leva ao fundo do poço a alma mais perturbada. O normal de hoje é a transgressão moral, queimar as tábuas e tudo que foi nos deixado através da dor e sangue. O normal de hoje são os vínculos materiais, as bolhas e tudo que pode se acumular visualmente para que possa ser mensurado, cobiçado e amado. É normal ver as posições trocadas entre homens e mulheres e não poder dizer que não é natural sem ser censurado e taxado como um canalha preconceituoso. Tudo bem, direi que é normal, mas meu pensamento continuará na canalhice pois não posso abortar preceitos que aprendi com tantas gerações. Normal é ser normal, descarado, doutrinado e condutor de uma ordem que tão pouco desconhecem.

Enquanto isto, coisas anormais se tornam ainda mais escassas. O verdadeiro amor sem interesses, sem vilipêndios semânticos, o puro e simples de estar por estar. Longe se esvai o respeito ao próximo, os contratos voluntários o caminhar sem medo. E tudo fica distante e complicado demais para entendermos, pois o que era normal está morrendo e voltando para algum lugar para quem sabe, um dia voltar com mais força.